ESQUEÇAM A ESPERANÇA - Humanaesfera


Trechos do texto "A internet: uma história de invocação, bolhas e subsunção ao capital" https://humanaesfera.blogspot.com/2018/07/a-internet-uma-historia-de-invocacao.html?m=1

Na realidade, a luta de classes - o movimento de associação direta e universal dos proletários do mundo que afirmam seus desejos, desenvolvem suas capacidades e lutam pela satisfação de suas necessidades contra o capital, contra a propriedade privada e o Estado - historicamente jamais ocorre sobre um pano de fundo vazio e muito menos fúnebre, nem ocorre como mera afirmação voluntarista de pessoas ou coletividades esperançosas frente a uma suposta "realidade brutal". 

Pelo contrário, a luta ocorre sempre pelas forças produtivas da espécie humana, as quais consistem precisamente nas necessidades e faculdades dos seres humanos que se produzem e se desenvolvem como fins em si e não como meios para fins alheios. É isso que coloca periodicamente em risco a produção e reprodução do capital, que, contudo, não pode se expandir sem invocar precisamente essas forças. Mas as invoca apenas para separá-las violentamente com a cunha policial-penal que é a propriedade privada: de um lado, para controlar e formatar essas necessidades (submetendo-as a uma contínua escassez, única maneira de vender continuamente mercadorias) e, de outro, para explorar e extrair mais-valia dessas capacidades (a contínua escassez requer que se consiga dinheiro continuamente para comprar, impondo a cada um a competição por vender também continuamente as capacidades humanas - isto é, a si mesmo - ao capital no mercado de trabalho; a seguir, são submetidas a ameaças de punições e recompensas, para que se trabalhe ao máximo, criando produtos que serão vendidos para realizar a mais-valia e reproduzir ampliadamente o capital). 

Em suma, desde a revolução industrial (século XVIII), a expansão do capital não pode ocorrer sem invocar a irrupção de forças produtivas, isto é, capacidades e necessidades humanas, que fogem periodicamente ao seu controle e ameaçam transbordar os limites, aboli-lo e ultrapassá-lo. O capital então luta contra elas, para contê-las e transformá-las em forças destrutivas, mortíferas, que negam, embotam, diminuem, vampirizam e empobrecem as faculdades e necessidades da espécie humana. No entanto, o capital não é nada mais do que essas mesmas capacidades e necessidades  (as próprias forças produtivas) que se voltam contra si mesmas (acidentalmente) ao comporem um mecanismo (trabalho morto, o capital) que se reproduz cumulativamente como se fosse uma força de fato automovente, automática, uma força espontânea, irresistível como um fenômeno natural. Eis o pano de fundo da luta de classes. [4]

(...)

Como vimos anteriormente, a autoconstituição do proletariado em classe autônoma contra o capital, a luta de classes, jamais ocorre sobre um pano de fundo vazio ou fúnebre a que se confrontaria a livre vontade ou livre arbítrio de explorados esperançosos, que romperiam o isolamento mediante uma comunidade de sofrimento, dor e culpa. 

Na realidade concreta, é exatamente o contrário: as capacidades e necessidades humanas, as forças produtivas, são simultaneamente fins em si e os meios da luta do proletariado contra o capital, e apenas delas depende a ruptura do isolamento e da atomização, a fraternização, a sua irrupção como classe histórico-mundial, assim como a sua vitória ou derrota. Enquanto o outro for encontrado na prática como causa de impotência, negação dos desejos e necessidades,  empecilho à sobrevivência na competição de cada um contra todos pela submissão à propriedade privada dos meios de vida, não há a menor possibilidade de romper a atomização e o isolamento. E as tentativas de romper isso mediante "força de vontade", "ideias corretas" ou ativismo apenas reproduzem a mesma circunstância, no máximo criando uma competição moralista ainda mais insuportável, introduzindo em um nível ainda mais extremo na subjetividade humana o "fazer por fazer", a "produção pela produção", a subsunção real ao capital.

À liberdade, que consiste na afirmação prática das forças produtivas da espécie humana, o capital contrapõe a liberdade fictícia do livre arbítrio, livre escolha, livre vontade. Essa liberdade imaginária é o modo pelo qual ele submete e adapta a subjetividade humana à separação entre capacidades e necessidades, violentamente separadas pela privação de seus meios (propriedade privada). Essa pseudo-liberdade serve para voltá-las contra elas mesmas, convertendo-as, de forças produtivas, em forças destrutivas, acumulação do trabalho morto, servas ativas do imperativo de escolher entre as inumeráveis opções de submissão e exploração que o capital apresenta para se reproduzir indefinidamente. 

As faculdades e necessidades humanas se criam, se produzem e se desenvolvem nas condições de existência materiais que elas estão transformando, ou seja, na práxis. Nisso, elas produzem a si mesmas, fazendo despontar, nessa transformação, faculdades, potencialidades, desejos e necessidades inéditas, a descoberta de potenciais inimagináveis e impossíveis nas condições anteriores. Não há livre escolha. Escolher, por definição, é escolher dentre as coisas já conhecidas, já existentes: elementos componentes do próprio status quo. Na verdadeira liberdade, ao contrário, nada é escolhido, nenhum possível é selecionado, mas, transformando as condições em sua totalidade, irrompe aquilo que é sempre considerado rigorosamente impossível.

Isso implica que não faz o menor sentido que a teoria comunista seja feita para competir com outras para ser escolhida pelos explorados, popularizada, "viralizada". Dado que, como vimos, não é da livre escolha dos proletários que surge e se desenvolve sua luta, sua liberdade, sua autonomia, mas do aumento materialista de suas capacidades de agir (de afirmar na prática seus desejos, satisfazer suas necessidades, desenvolvê-las etc associando-se como classe sem fronteiras contra a ditadura do capital), que são indistinguíveis do aumento de sua capacidade de pensar autonomamente. É apenas como expressão disso que a teoria comunista pode ser apropriada nos seus próprios termos, ao invés de se rebaixar a uma propaganda a mais na sociedade do espetáculo. Em outras palavras: é da práxis comunista que surge a necessidade de se apropriar das teorias presentes e passadas que trataram precisamente dessa práxis. Ao mesmo tempo, eles as criticam, livrando-as dos aspectos equivocados do passado, para desenvolver a teoria de sua práxis concreta, o conhecimento do que é objetivamente necessário fazer para destruir a sociedade capitalista e liberar o caminho para que o processo de irrupção do impossível vá até o fim.

Isso também implica que, nos longos períodos de incapacidade prática como o de hoje (derrota profunda do proletariado), a minúscula minoria que (graças aos acasos existenciais) toma partido do comunismo desenvolve teorias cuja única importância é compor uma análise radical da sociedade capitalista, das mutações da dominação e da exploração, e, principalmente, do situação das necessidades e faculdades humanas. São estas últimas que, volta e meia, mais cedo ou mais tarde, irrompem como forças produtivas selvagens, mesmo porque o capital é fadado a periodicamente invocá-las para expandir as condições materiais da intensificação da acumulação, destravando inadvertidamente essas forças. Mas como toda transformação das condições de existência cria a irrupção do impossível, do inesperado e imprevisível, o capital se vê forçado a lutar violentamente por domesticar essas forças, por fazê-las voltarem-se contra si mesmas, visto que elas ameaçam transbordá-lo, aboli-lo, ultrapassá-lo.

A partir das análises das contradições e potencialidades que se desenvolvem na sociedade capitalista, a teoria atualiza o programa comunista, que nada mais é do que um esboço de síntese (sempre incompleto enquanto o capital e o Estado não forem abolidos) das necessidades práticas objetivamente indispensáveis para superar a sociedade de classes hoje (todas rigorosamente impossíveis, como vimos logo atrás). 

Por exemplo, frente ao fato de que greves, protestos e ocupações terem se tornado domesticadas e canalizadas pelas várias facções da classe dominante que competem entre si por dirigir o trabalho assalariado, o capital e o Estado (desde os burocratas de esquerda e direita até as várias facções legais e ilegais do capital nacional e internacional, capitalistas financeiros, comerciais e industriais), é hoje comprovadamente uma ilusão supor que essas táticas pressionem por reformas capitalistas graduais em favor dos trabalhadores (p.ex., em direção a um "Estado de bem-estar social"). Contra essa ilusão, os comunistas se posicionam afirmando a necessidade objetiva de superar essas velhas táticas, substituindo a greve pela tática de produção livre que abole imediatamente a empresa e o emprego ao se difundir exponencialmente de modo incontível em todo o mundo com rapidez. Essa rapidez na difusão exponencial é necessária para abolir a divisão do trabalho - ou seja, as condições de existência da mercadoria, do Estado e do capital - antes que o capital consiga tempo de estudar e implementar a reação, e antes que os estoques se esgotem obrigando a trocar - comprar/vender - por produtos fabricados na outra parte do mundo da qual ainda está privada, o que forçaria a competir com ela para que os produtos sejam trocados vantajosamente, reproduzindo necessariamente a exploração e a sociedade de classes em seu interior. Trata-se de suprimir a propriedade privada das condições de existência universalmente interconectadas (as supply chains e os meios de produção e distribuição mundiais), com o objetivo de abolir todo e qualquer sistema de recompensas e punições, libertando as forças produtivas como expressões dos desejos, necessidades e capacidades humanas como fins em si, a comunidade humana mundial. 

humanaesfera, julho de 2018

[4] Ver Absolute Property, de G. Kay e J. Mott, O Anti-Édipo - capitalismo e esquizofrenia de Deleuze & Guattari. Também o conceito de composição de classe, desenvolvido pela autonomia operária italiana nos anos 1960-1970. O livro Signos, Máquinas e Subjetividades, de Maurizio Lazzarato. Os Grundrisse, de Marx, bem como, também de Marx, o Rascunho sobre um livro de Frederic List:

“A indústria pode ser considerada como uma grande oficina em que o homem primeiro toma posse de suas próprias forças e das forças da natureza, se objetiva e cria para si mesmo as condições para uma existência humana. Quando a indústria é considerada desta forma, abstraímos as circunstâncias em que ela opera hoje, e nas quais existe como indústria; nosso ponto de vista não está no interior da época industrial, mas sobre ela; a indústria é considerada não pelo que ela é para o homem de hoje, mas pelo que hoje o homem é para a história humana, o que ele é historicamente; não é a sua existência atual (não a indústria como tal) que é reconhecida, mas sim a potência que a indústria tem sem saber ou querer e que a destrói e cria a base para uma existência humana.[...]

Esta apreciação da indústria é, ao mesmo tempo, o reconhecimento de que é chegada a hora de acabar com ela, ou da abolição das condições materiais e sociais em que a humanidade tinha que desenvolver suas habilidades como um escravo. Pois desde que a indústria não é mais considerada como um interesse mercantil, mas como o desenvolvimento do homem,  é o homem, no lugar do interesse mercantil, que é tornado princípio, e àquilo que na indústria pode se desenvolver apenas em contradição com a própria indústria é dado a base que está em harmonia com o que está para ser desenvolvido.

[...]

A escola de Saint-Simon deu-nos um exemplo instrutivo do que ocorre quando a força produtiva que a indústria cria inconscientemente e contra a sua vontade é creditada à indústria atual e as duas coisas são confundidas: a indústria e as forças que a indústria traz à existência inconscientemente e sem a sua vontade, mas que só se tornarão forças humanas, a potência do homem, quando a indústria for abolida. [...]  As forças da natureza e as forças sociais que a indústria traz à existência (que ela invoca) tem com ela a mesma relação que o proletariado tem. Hoje eles ainda são os escravos do burguês, que não vê neles nada além de instrumentos (os suportes) de sua cobiça suja (egoísta) pelo lucro; amanhã eles vão quebrar suas cadeias e se revelar como os portadores do desenvolvimento humano que vai lançá-los pelos ares junto com sua indústria, que assume essa casca suja exterior - que ele considera como a sua essência - só até que o núcleo humano ganhe força suficiente para estourar esta carapaça e aparecer em sua forma própria. Amanhã eles arrebentarão as cadeias pelas quais o burguês os separa do homem e assim os distorce (transforma) de um vínculo social real em grilhões da sociedade." Trechos do rascunho de um artigo sobre o livro de Friedrich List: Das Nationale System der Politischen Oekonomie, por Karl Marx (março de 1845) 

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