Crítica ao "socialismo real" - Anselm Jappe

 

Anselm Jappe (2006, pp. 194-196) descrevendo de forma bastante precisa o lugar histórico do vulgarmente chamado «socialismo real»:

Dissemos já que a fuga para a frente do capitalismo, sempre em busca de meios para bloquear a queda da massa do valor, conduziu, depois da crise económica mundial de 1929 e da Segunda Guerra Mundial, à democracia fordista. Esta última, por seu turno, entrou definitivamente em crise com a revolução informática. No século XIX, depois da Inglaterra, foram, entre os países grandes, primeiro a França e os Estados Unidos e depois a Alemanha que edificaram um capitalismo industrial. Rapidamente, porém, tornou-se evidente um outro facto: a economia de mercado não é – ao invés do que ainda hoje se pretende fazer crer – o «modelo» justo que bastaria aplicar em cada país para colher de seguida os respectivos frutos. Pelo contrário, cada economia nacional de mercado situa-se desde o início no quadro de uma economia mundial fortemente determinada pela concorrência. A Inglaterra conservou durante muito tempo a vantagem que lhe vinha do facto de ter sido a primeira nação a inundar os mercados mundiais com as suas mercadorias. No seguimento, as outras economias nacionais tiveram que contar com um nível de produção estabelecido pelas nações já industrializadas. Era-lhes portanto necessário, antes mesmo de começar a produzir, investir em infra-estruturas e em capital fixo que tinham que se encontrar ao mesmo nível que nos países mais desenvolvidos. Dito de outra maneira, esses países tinham que colmatar um atraso que era tanto maior quanto mais tarde tivessem entrado na competição. Assim, ojapão e a Itália foram os últimos países a conseguir entrar no «pelotão da frente». No século XX, tinha-se tornado impossível implantar o modo de produção capitalista num país sem que a respectiva economia fosse de ¡mediato abalada por um afluxo de mercadorias a preços baixos oriundas dos países já industrializados.

Nesta situação, a única possibilidade de tomar parte na «modernidade» numa posição não completamente subordinada era uma autarcia forçada: um espaço protegido de toda a concorrência exterior permitia o desenvolvimento de um capitalismo local. É com efeito o que se passou na Rússia e na China e em muitos países da periferia capitalista. A «construção do socialismo» na Rússia não foi nem uma tentativa, mal sucedida por circunstâncias adversas, para construir uma sociedade emancipada (como afirmavam os seus partidários), nem a ambição louca de realizar uma utopia ideológica (como tentavam fazer crer os seus críticos burgueses), nem tão pouco simplesmente uma «revolução traída» pela nova burocracia parasitária (como proclamavam os seus críticos de «esquerda»). Foi sobretudo uma «modernização tardia» levada a cabo num país atrasado. A mercadoria, o dinheiro, o valor, o trabalho abstracto não foram abolidos, antes se procurou desenvolvê-los até alcançarem os níveis ocidentais, suspendendo para tanto o livre mercado. A economia mercantil não foi ultrapassada, mas devia ser dirigida pela «política» [assim, os capitalistas se unificaram no que Engels chama de «capitalista coletivo ideal», isto é, no Estado Moderno]. Repetiu-se na Rússia uma espécie de «acumulação primitiva» que implicou a transformação forçada de dezenas de milhões de camponeses em trabalhadores de fábricas e a difusão de uma mentalidade adaptada ao trabalho abstracto. Os recursos da sociedade foram canalizados para a construção das infra-estruturas e para a implementação da indústria pesada num grau que nunca poderia ter sido alcançado por uma economia de base privada. A redução do comércio externo ao mínimo, ou seja, a autarcia, permitiu que nesse país de enormes dimensões se fizesse crescer uma indústria que teria desaparecido prontamente se fosse obrigada a resistir de imediato ao impacto da concorrência mundial. Inicialmente os sucessos foram de facto notáveis, e em pouco tempo a União Soviética tornara-se a segunda potência industrial à escala mundial. As «democracias ocidentais» declaravam-se horrorizadas com os métodos empregues para a obtenção desses resultados. Na verdade, o que aí viam mais não era do que um resumo dos horrores do seu próprio passado – a Rússia atrasada tinha repetido em poucos anos aquilo que no Ocidente demorara séculos. Com efeito, como dissemos atrás, a instalação da «livre» economia de mercado no Ocidente realizou-se igualmente graças ao terrorismo de Estado, os trabalhos forçados, a destruição das tradições, a redução dos camponeses à fome e a supressão das liberdades individuais. Nos países do Leste, o Ocidente dito «livre» via a imagem reflectida das suas próprias origens – mesmo se tanto de um lado como do outro os protagonistas se recusavam a admitir este facto. Os sucessos iniciais da URSS encorajaram grandemente outros países a seguir a mesma via para se integrarem de maneira favorável na economia mundial. Foi inicialmente o caso da China, ao passo que outros países do terceiro mundo procuraram combinar o método estatal com doses mais ou menos elevadas dos mecanismos de mercado. Quanto mais avançada se encontrava a evolução do mercado mundial, mais os países em causa se encontravam atrasados segundo os critérios capitalistas e mais os métodos se tornavam violentos, senão mesmo delirantes. A ideologia socialista mais não era do que uma justificação paradoxal para introduzir mais rapidamente as categorias capitalistas em países nos quais estas se encontravam ainda amplamente ausentes. Em vez de «emancipar» o proletariado, foi necessário antes de mais criá-lo ex nihilo [aqui o Jappe comete o equívoco de, ao mesmo tempo que compreende a natureza capitalista desses processos, acaba por supor que a proletarização nesses países teria sido «ex nihilo», o que ele mesmo demonstrou não ser].

Mas, na história do capitalismo ocidental, as fases marcadas por uma forte intervenção do Estado sempre alternaram com fases em que predominava o mercado «puro». No Leste, esta alternância não teve lugar e o capitalismo de Estado [esse termo é impreciso, provavelmente usado apenas por convenção], depois de ter conseguido implantar as indústrias de base, começou a girar em seco, voltando a ficar atrasado relativamente à evolução económica e tecnológica do Ocidente. Contudo, a existência de um vasto mercado protegido, o COMECON, permitia a sobrevivência de numerosas indústrias que não teriam tido qualquer hipótese de sucesso nos mercados mundiais. Esse facto tornava possível manter um nível de vida suficiente para conservar um consenso mínimo. E era tudo. O «socialismo real» nunca foi uma «alternativa» à sociedade mercantil; foi sim um ramo morto dessa mesma sociedade, uma nota de rodapé na respectiva história.

– Referência:

JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria: Para uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006.

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